Jarbas e o Entregador de Frangos (Parte I)

JarbasEu estava com os gânglios à flor da pele naquela noite, quando Jarbas chamou-me na cozinha e mostrou o frango estilhaçado em cima da mesa. Tinha as bochechas encharcadas de sangue e logo percebi que ocorrera uma luta feroz naquele recinto. Recostei-me na cadeira acolchoada e pedi que Jarbas limpasse o rosto com o pano de prato e fizesse uma massagem em meus ombros, enquanto me explicava o que exatamente ocorrera em minha ausência. Ele começou com lamúrias e toda sorte de artifícios para evitar falar no assunto. Olhei-o nos olhos, ao contrário, reclinando minha cabeça para trás enquanto equilibrava a poltrona em apenas duas patas. Era uma manobra arriscada que eu não tentava há um bom tempo, mas eu precisava convencer o pobre Jarbas de que era necessário que ele me esclarecesse certos pontos, caso contrário eu não poderia ajudá-lo. Não foi necessário muito mais do que isso. Prontamente, ele lavou suas mãos na pia e sentou-se no banquinho chinês a minha frente, relatando de um fôlego só os últimos acontecimentos. Falou do entregador de frangos, que havia marcado de encontrá-lo na cozinha por volta das nove horas, para entregar uma encomenda ultra-secreta para um prato exótico. Pouco antes da hora combinada, Jarbas colocou seu melhor fraque, subiu no parapeito da janela do segundo andar e, tal qual um galo no cio, começou a cacarejar e ciscar minhocas e vermes. Nisso, o entregador de frangos estacionava seu carro em frente à casa, pouco depois de dar uma volta no chafariz. Nesse exato momento, eu estava pescando e flertando com mademoseille Rousseau, no Lago Albergue. Estava sorrindo, já com o bucho cheio de vinho e com uma ereção protuberante que despontava por baixo de minha calça colante francesa. Jarbas não conseguiu evitar que o entregador de frangos avistasse ele lá de baixo, pasmo, segurando um saco cheio de frangos holandeses ainda esperneando e tentando fugir dos recheios variados, que fariam lugar das suas vísceras tão logo Jarbas pudesse habilmente fazer as suas acrobacias com seu cutelo encantado. Acontece que a mulher do entregador de frangos é prima em terceiro grau da afilhada da avó de Jarbas, e seria contraprudente deixar o entregador sair daquela casa sem uma explicação adicional. Ele recompôs-se rapidamente e desceu para receber o entregador que passou por ele em direção à cozinha sem dizer uma só palavra. Parecia mais incomodado que o próprio Jarbas, que percebeu ali uma brecha para manobra. De repente, Jarbas apertava demais certos nervos sensíveis em meu pescoço e falei para ele tomar mais cuidado, pois parecia um pouco tenso. Eu não iria repreendê-lo, afinal tinha-o como filho e a segurança dos meus era mais importante do que qualquer coisa. Quanto ao seu comportamento suspeito na janela do segundo andar, era algo totalmente compreensivo, tamanha pressão que vinha sofrendo nos últimos dias, quando mademoisele Rousseau vinha rondando a casa com uma freqüência cada vez maior, trazendo suas amigas glutonas que solicitavam as mais absurdas iguarias a Jarbas que, apesar de ser um artista inigualável na cozinha, estava há semanas sem um repouso descente, e por essa razão, completamente fragilizado, sendo facilmente influenciado por fatores externos. Jarbas ouvia tudo com atenção, ficando mais calmo, como percebi pelo movimento de suas mãos. Subitamente, uma gota de sangue de suas bochechas mal lavadas caiu em minha testa, escorreu ao lado do meu nariz e foi se alojar em meu bigode. Dei uma fungada forte e pulei da poltrona, que caiu para trás derrubando Jarbas. Demônios, não era sangue de frango, como eu pensava desde o início, era sangue humano. Agora sim ele me devia explicações. Olhei para ele com preocupação e ordenei que terminasse de contar a história.

1 thought on “Jarbas e o Entregador de Frangos (Parte I)

  1. Olha, Aleph, o conto está bom desse jeito. Gostei muito mesmo. Também acho legal deixar esse anticlímax, tipo, terminou ou não terminou? Fica subentendido que o Jarbas matou o entregador. Ou não, como diria Caetano. Enfim, deixar as coisas no ar é um bom modo de terminar uma história.

    Mas uma narrativa mais convencional realmente pediria um final propriamente dito.

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