Caro irmão

Hoje cheguei ao povoado. Nesse momento estou na casa de uma simpática senhora que costuma hospedas os inexistentes viajantes que misteriosamente surgem nesta região. Contei a ela meus planos de morar aqui e pedi informações sobre um possível terreno à venda. Ela ficou surpresa que um “moço da cidade” tivesse interesse de morar neste “lugar esquecida por deus”. Disse a ela que planejo passar apenas algum tempo. Senti hoje, logo que cheguei aqui, uma estranha sensação de paz interior. Confesso que sinto falta de computadores conectados a internet e outras bugigangas da mesma família, coisas às quais eu estava tão intimamente ligado no meu trabalho, na minha vida. Felizmente trouxe esta velha máquina de datilografar, pois não conseguiria lhe escrever esta carta à mão! De qualquer forma estou bem…

Ah, como sou incompetente em mentir! Não sou capaz disso meu irmão, não estou em paz! Estou tremendo, coisas me incomodam. Ao falar de meus planos tive a certeza de que esta senhora é um maldito lagarto! Quando desviei meus olhos dela por um instante vi algo, uma sombra nas lentes de meus óculos, algo que me deixou aterrorizado e faz minha barriga doer agora. Também antes de chegar aqui havia encontrado um velho senhor capinando na beirada da estrada, ele pareceu me dizer algo tão tranqüilo e simples e percebi no fundo de seu estômago algo se contorcendo, algum organismo vivo que havia sido frito com a gordura do próprio corpo. A cidade inteira parece ser habitada por esses simulacros de boa e simples gente, meu irmão. Você consegue imaginar meu terror? Esperei tanto tempo por este momento, tantos planos, tantas certezas, e agora isso! O horror, o profundo desconforto, a dor. Como posso colocar em palavras o que sinto? É algum castigo não poder me refugiar longe dos meus pesadelos? Eu vejo as coisas, não é minha vontade, mas eu sei, consigo ver a miséria no interior destas criaturas.

Pretendia escrever uma carta com boas notícias para você, pretendia esquecer o que vi hoje, mas precisava desabafar com alguém, mesmo não tendo certeza se você receberá esta carta. As palavras no papel ajudam a me acalmar. Ajudam sim. Queria poder viver em paz, parar de ser perseguido. O que querem de mim? Por que me torturam? Fugi porque resolvi parar de procurar respostas para estas questões. Tenho certeza agora de que nunca conseguirei, tenho a prova cabal disso em torno de mim, do outro lado destas paredes velhas.

Meus pés doem meu irmão, doem como se estivessem sendo devorados por formigas. É outra forma de ver a vida, é outra forma de criar os parâmetros! Preciso deles para poder me libertar desta prisão. Preciso lhe falar ainda a respeito das outras pessoas que me espreitam aqui, que fazem eu me sentir assim. Os objetos dançam vagarosamente aqui neste quarto simples. O homem da carroça, a filha da dona desta estalagem, o padre na frente da pequena igreja… Todos eles. Juro que não tomei nenhuma droga hoje, nem mesmo os fármacos receitados. Queria entrar puro em um reino que considerava puro. Meus batimentos cardíacos continuam acelerados.

(publicado no O Novo Conto Catarina, EduFSC, 2008. p.15, na versão on-line do jornal A Notícia e também no jornal Ô Catarina nº66. p.3, que pode ser baixado aqui)

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