Senhores, tenho o prazer de apresentar o Manipulador Quasímodo de Sonhos. O dispositivo MQS permite manipular o sonho de qualquer pessoa remotamente, através de uma interface ergonômica e biocibernética. Mas vamos ao funcionamento do dispositivo: com as mãos mergulhadas nessas duas belezinhas, qualquer um pode navegar no tecido pantanoso do sonho de um indivíduo XY, macho ou fêmea, com estatura média de 1,5m em diante. Infelizmente o engenho não funciona corretamente em espécimes abaixo dessa altura e não há explicação lógica para isso até o momento, mas suspeitamos que o ângulo de plotagem do eixo de dobra esteja alcançando um pico um pouco acentuado, fazendo com que a sublimação dos resultados, quando em impressoras matriciais de 24 agulhas, sofra influência da umidade helicoidal. Nada que um prognóstico mais cartesiano não resolva, no entanto chegamos à conclusão que o prejuízo é mínimo, mesmo que nossa decisão seja politicamente incorreta. Sim, temos amizades várias e mesmo influências nas mais altas camadas do poder público e privado, como naquele jogo de cordões chineses, em que, quanto mais se tenta escapar, mais os dedos ficam presos. Mas como eu ia dizendo, o MQS permite moldar os sonhos como se molda argila fresca, ou como se manipula marionetes. Olhos grudados no monitor, ok? Prestem muita atenção no movimento do espécime enquanto meus dedos sentem as possibilidades, as entranhas da realidade se contorcendo e roendo os cantos das unhas e sem esperar, estou dentro da cabeça do nosso XY, escorregando pela sua garganta viscosa e febril; colhendo maçãs com chapéu panamá em um pomar cercado de paredes lisas e opacas; bebendo café descalço ao lado da torre francesa de metal, que emite ondas de rádio sólidas como teias de aranha feitas de mingau de aveia; correndo por uma floresta de duplicáceas, que imitam um espaçoporto em Singapura, abandonado e enferrujado, que custou 115 milhões de dólares, vindos do setor privado e da comissão de um construtor que ajudou a erguer um patíbulo em Buenos Aires, que causou irritação dos vizinhos e de uma centena de texugos herbívoros e esfomeados loucos para sacrificar um esquadrão de alfaces abandonadas na geladeira…
Por um momento você sacode em sua cadeira, suas mãos deslizam para fora do dispositivo MQS e você percebe que todo o projeto foi uma grande perda de tempo. Engaveta a idéia, toma um café forte o suficiente para acordar dos seus sonhos e lembrar do discurso de apresentação, da alusão aos sonhadores anões e a teia de relações duvidosas. Tudo um erro, sempre o mesmo erro repetitivo e insistente. Anos de pesquisas e experimentos para desenvolver um amontoado de borracha, sensores táteis e microprocessadores orgânicos. Você abre a janela e encara o sol lá fora com seus tentáculos dourado-flamejantes. Sempre aceitando as ordens ditadas pelo destino, sempre se ajoelhando ao capital e a necessidade epicurista destes que insistem em chamá-lo de amigo, pagando refeições caras, sorrindo e pedindo estes dispositivos estúpidos em troca. Agora chega, nada mais terão de você, suas próximas ações, suas próximas palavras, mostrarão que você sabe como virar a mesa, que nada foi em vão, que a matéria-prima de anos de subordinação intelectual será bem utilizada.
Com vocês, uma palavra dos nossos patrocinadores: “Olá, quero lhe falar sobre tubos. Seus tubos são antiquados? Os novos desenhos de tubos dos Serviços Centrais estão agora disponíveis em centenas de cores para satisfazer seus gostos individuais. Corra enquanto ainda é tempo, visite a loja mais próxima dos Serviços Centrais. Cores desenvolvidas para satisfazer seu gosto sofisticado”.
Um homem empurrando um carrinho de compras passa pela frente dos seus olhos. Você vê a loja explodindo e o título “O nascimento do Brasil” preenche toda a tela. Mudança de cena, parágrafo novo.
Esse é o dispositivo MQS senhores, algo que vai transformar a maneira como as pessoas vêem o mundo, algo que vai… transformar as pessoas, a realidade e o mundo. Esse e os outros. Perdoem os meus clichês, mas não tenho dúvida de que a Valis Inc. dá um passo gigantesco para a construção de uma nova era com o dispositivo MQS. Boa noite e passem bem.
na minha opinião, esse é um dos teus melhores textos.
congrats from the fabric!
Ao, concordo com a Lê, um dos melhores textos. Claro que não busco nenhum significado linear, leio pelo simples fato de apreender as informações na mesma velocidade que às esqueço. Mas nota-se a forma como você vê/imagina o mundo e a peculiaridade do seu humor. Conhecendo o que você andou lendo nos últimos tempos, dá pra entender perfeitamente a temática do “manipulador de sonhos”. Quasímodo é o corcunda de Notredame não é? Tem uma pitada de sonho lúcido aí no meio.
Tem algumas críticas ocultas no meio dos léxicos, parece-me. Ou estou viajando mesmo. Ou quem sabe sonhando?
Abraço!
Guedo
massa, parece com a máquina do brilho eterno.
Depois de tanto elogio (que eu ratifico e assino embaixo), só um reparo: aquele primeiro parágarfo tá grande demais, e cansa. Não dá pra dividir?
E eu tinha razão, né? Philip Dick é a tua cara, hehehe…
bj
@Leila: muito obrigado querida :*
@Rodrigo: sim, é esse Quasímodo mesmo. Obrigado pela visita e pelo comentário meu amigo.
@Léo: boa lembrança!
@Regina: obrigado pela dica, dei uma olhada e realmente dava pra “fatiar” o primeiro parágrafo ao meio e foi o que fiz, no momento em que as mãos do personagem deslizam para fora do MQS, achei que merecia um novo parágrafo.
Muito bom, Aleph, um delírio meio ficção científica, meio Borges, um pouco tensa, tamanha a necessidade de convencimento do narrador, e plena de ironia, do outro lado do texto, ou melhor, no meio das palavras e das idéias, nos interstícios do significado, ali, na brecha que se abre ao olhar do leitor à medida q as palavras vão ganhando sentido e se conectando ao universo daquele que lê. Resumindo: gostei da idéia e da formato do texto, que abre essas possibilidades que fui observando durante a leitura. Porém, ainda há muito mais nesse texto que precisaria ser comentado com mais calma…Parabéns, Aleph! Abraço!
Poxa, massa Aleph. O leitor cai direitinho. E colocar o pleno funcionamento do dispositivo como a desistência do mesmo foi o máximo da ironia. Muito bom!
Abração.