O Zé é meu amigo eremita, que mora lá no Morro das Pedras, em uma casa feita por ele mesmo. Não vê TV nem ouve rádio, mas lê vorazmente tudo que lhe cai nas mãos. Ele tem uma esquisitice que nunca consegui entender: apesar de aparentemente bem informado, acredita que o mundo se resume aos poucos lugares por onde ele caminha. Duvida até mesmo da existência do continente e acha que a Ilha de Florianópolis é a única coisa que existe. Se aparece algum estrangeiro ele afirma, irredutível: “Esse aí deve morar do outro lado da Ilha, mas eu não sabia que falavam outra língua por lá”.
Esses dias o Zé passou mal e tive que levá-lo com urgência ao hospital. Enquanto ele fazia uma careta de sofrimento e se agarrava ao banco do passageiro como um caranguejo, eu dirigia como um louco, furando vários sinais fechados no caminho. Como não tínhamos nem um centavo em nossos bolsos, eu precisava encontrar um hospital público para atendê-lo, mas todas as portas pareciam fechadas e só atendiam em caso de risco de morte. “É Zé, você precisa morrer para ser atendido”, arrisquei a piada mórbida quando deixamos o estacionamento do Hospital Universitário à procura de outro hospital. A última opção era o Hospital Regional de São José. Enquanto atravessávamos a ponte, avisei:
– Prepare-se, Zé, você vai finalmente conhecer o continente.
– Mentira! – ele ainda conseguiu grunhir incrédulo por baixo do seu sofrimento, antes de desmaiar.
Preocupado, corri o máximo que pude rumo ao hospital. Naquele estado, ele finalmente foi atendido com urgência no Regional de São José. Aplicaram um bom analgésico nele e trataram de fazer exames para avaliar sua condição. Descobriram que era cálculo renal e receitaram uns remédios, caso as dores retornassem. Levei-o para casa, ainda sob efeito dos remédios. Agora era fazer mais alguns exames e consultar um especialista. Já estávamos chegando novamente ao Morro das Pedras quando o Zé se recobrou. Olhou para mim satisfeito e falou:
– Rapaz, eu passei muito mal mesmo, teve uma hora que parecia que eu tava morrendo, a Ilha tava ficando pra trás e a gente tava sobrevoando o mar rumo ao infinito.
(publicada no Plural do Notícias do Dia, 16/8/08. p.3)