I – Adaptação
Enquanto olho para os meus pés descalços lembro de como tudo começou, do dia em que fui contratado para trabalhar no entreposto de corpos. Depois de uma semana já estava perfeitamente adaptado à nova função e aos hábitos dos meus colegas de trabalho. Quando nos reuníamos nos fundos do galpão para o carteado, aproveitando todo o tempo ocioso que tínhamos, ficávamos cogitando quem seria o próximo corpo, se seria alguém importante, algum figurão da cidade. Nessas horas eu sempre estava com aquelas botas altas de borracha, no estilo entregador de carne, para evitar a umidade do depósito. Rubens costumava apontar para o teto, mudando o ângulo do braço direito e da cabeça, até que seus globos oculares ficassem completamente concentrados nas telhas de zinco e o braço direito na vertical. Apenas os novatos acompanhavam este ritual, os outros já sabiam que após alguns segundos ele piscaria e voltaria à posição normal, perguntando quem estava ganhando no jogo de truco e anotando o placar. Era uma das manias mais esquisitas de um dos componentes de nossa equipe, mas não era a única. A matéria prima pela qual procurávamos estava muito além do assoalho podre. Carregaríamos o corpo de nossos mortos por vários quarteirões e no fim estaríamos aptos a desembocá-lo nos fundos de um bar selvagem ou em frente a uma armada japonesa, falando com aquela entonação desproporcional para a nossa cultura, mas no fim era o que tínhamos.
Todos os dias, antes de tomar meu posto, eu me benzia em frente ao espelho quebrado, como se tivesse alguma fé, mas na verdade estava apenas tentando acompanhar o credo de meus camaradas. Havia cansado de cuspir em cima de suas crenças — atitude que acabou me isolando por muito tempo. Então ocorreu o batismo naquela terça chuvosa e todos puderam festejar com sucrilhos e galinhas empanadas, eu vestido de branco com aquela camisa de rendas na gola e nos punhos, nos ombros de Golias, jogando farofa com torresmos de pele de frango para todo lado. Só de pensar me dá arrepios nos cotovelos, como se os pedaços de pele tostados fossem minha própria pele. Nas semanas seguintes passei a ser mais respeitado na firma e tive a honra de encaminhar vários cadáveres seguidos, em três semanas de trabalho. Meus camaradas lá atrás do tabique jogando truco ou dominó amazonense, e eu cá na frente, comandando o balcão dos clientes: “próximo, não se acanhe, traga seu defunto, causa mortis, nível de putrefação, funeral viking, maometano ou budista?” Foram dias e noites memoráveis e eu acordava cedo e todos torciam por mim, como em uma maratona, comigo ainda no páreo, sem adivinhar o que me aguardava.
Então veio a doença e meus dedos direitos começaram a entortar para baixo, quase virando ao contrário. Durante a noite eu ouvia algo rangendo, e achava que eram as dobradiças ou meus dentes, mas na verdade eram meus dedos torcendo, como engrenagens enferrujadas. Tentei esconder dos meus companheiros a minha desgraça, mas eles logo descobriram e trataram de vestir luvas de borracha e pediam para que eu mostrasse a língua, colocando em minha boca aquela grande espátula de madeira. No pátio principal passei a andar em círculos, perguntando a mim mesmo, em voz alta para que meus companheiros pudessem ouvir: “essa dor no estômago, essas mãos vincadas, a postura incorreta…” Então me chamavam para a boa partida de truco embaixo da cobertura de zinco. Os novatos olhavam para minhas mãos desconfiados e tratavam de vestir as luvas de borracha talcadas, penduradas nos bolsos de trás de suas calças brancas. Meus parceiros mais antigos já começavam a dispensar as luvas, à medida que eu os subornava com o resultado da minha primeira safra de fumos de corda e o Adamastor espantava as muriçocas da plantação com a ajuda de óxido de cobalto. O mesmo Adamastor que me deu as costas no bar do pátio principal, fingindo não ouvir minha voz, enquanto eu tinha receio de pronunciar as palavras cabalísticas, com verdadeiro pavor de que os monstros do ID fossem despertados, atravessadores de matéria sólida e de corpos biológicos. O mesmo Adamastor que foi nomeado gerente geral pelos administradores e que mais tarde tornou-se um grande amigo, a quem confidenciei meu desejo de transferência para uma filial da empresa.
II – Correspondência
Caro Adamastor, ontem, enquanto retomávamos a conversa, percebi ter finalmente encontrado um novo irmão. Não me entenda mal, temos irmãos por toda a terra. Por outro lado, senti como se nunca houvéssemos nos distanciado. A amizade sempre foi algo difícil para mim. Difícil de lidar, de definir, de confiar, como em uma ficção magistralmente arquitetada. Mas não é para a ficção bater à porta de madrugada, com frio e toda ensopada, pedindo abrigo e comida, soluçando coisas sem sentido. Matéria prima dela mesma, se reconstruindo a cada segundo, congelada em um tempo-espaço completamente particular. A letra é sempre um corte no real, uma punção de morte. Em uma amizade plena precisamos viver uma experiência atrás da outra e não tudo interligado como em uma grande estrutura livre de suplências individuais.
Não pedirei desculpas pelo meu excesso de palavras, mas lembre-se da minha natureza quando se reportar aos nossos superiores. Só na dor sinto-me próximo e me afasto dos outros. Nunca conseguirei ser um bom mentiroso, mas aprendi a dominar a arte do exagero e da manipulação dos fatos. Posso desconstruir o objeto da minha lamúria, separar suas entranhas e usar apenas as partes que me interessam. Você me dirá que sou um canalha mentiroso, eu argumentarei que sou um transmutador. Quando busco a dissolução do eu, é por puro egoísmo. Fiquei hipnotizado pelo seu discurso metafísico em nossa última partida de truco e arrependo-me de não ter tomado notas naquele momento, pois infelizmente não lembro de tudo. Da pedra ao corpo e a alma. Por um momento pensei: “e onde não há riscos?” É algo que me afeta, que me desmonta, mas é inalcançável para mim. São diferentes articulações que a minha fala produz. Mesmo que eu me atirasse para navegar a costa, não tenho barco nem carta de navegação. Essa criação poderia não envolver o real. Mas a intersecção entre o imaginário e o real conta com todo o potencial da minha loucura, liberdade e criação. Dessas três, não sei qual delas é menos egoísta. Não posso mais pensar no meu gozo à custa do outro. Se o desgraçado do meu pai foi ausente em minha infância, sou um psicótico. E nunca me ocupei de procurar por uma metáfora do pai, um significado real ou imaginário. Como acompanhar essa articulação de forma a não expressar nem sim nem não? Como dar essa guinada ética? Como saberei que minhas formulações estão à altura das construções dos meus leitores? Não tenho a explicação para todas as coisas. Em um extremo cheguei a acreditar, como diz aquela música horrível, que só poderia acreditar em alguém que não tivesse todos os dentes, mas com essa lógica, como estarei me afastando daquele que me julga pela maneira como empunho a caneta? Quando se reportar aos nossos superiores, por favor, tente amenizar um pouco minhas divagações. O real é o que não para de se escrever. Ninguém pode não parar de não escrever a dor.
III – Transferência
Minha amizade com o Adamastor havia sido importante na decisão da administração em me transferir para uma de suas filiais. E como eu previa, o entreposto de corpos havia sido um bom começo em minha carreira profissional, algo do qual me orgulho e compartilho em meu currículo. Cheguei a ser promovido e transferido para o exterior, primeiro para uma loja de caixas africanas e depois para uma fábrica subterrânea de virabrequins cromados onde era chicoteado durante todo o dia, mas o salário era dos melhores. Mantinha um pequeno álbum fotográfico onde podia matar saudades dos meus amigos do entreposto. Infelizmente não havia serviço de entregas postais em minhas novas funções, por isso não consegui mais entrar em contato com meus companheiros e nunca cheguei a escrever uma carta de agradecimento ao Adamastor. Tornei-me uma pessoa solitária, depois um pária e por fim um misantropo. Andava pela cidade deserta durante a noite, e mais tarde, com mais coragem, durante o dia. Passei a fazer esquemas descritivos das minhas caminhadas, cada dia mais além e mais exploratórias. Os mapas tornaram-se cada vez mais complexos e detalhados até um ponto em que eu não sabia mais se caminhava pela cidade ou através dos desenhos que havia engendrado. Não encontrei mais ninguém em minhas andanças, tudo parecia abandonado. Sentia falta das chicotadas e do cheiro de corpos putrefatos.
Passaram-se dias, semanas, meses e anos e eu nem lembrava mais onde estava ou onde trabalhava. E mesmo assim, apesar das mudanças em minha vida e minha rotina, eu não estava convencido de que havia rompido o ciclo da perpétua repetição. Era como se todos os dias de minha existência fossem apenas um longo dia que chegava ao fim e iniciava novamente e o processo era reiniciado a cada nascer do sol até a exaustão. Por mais orgânicas e gradativas que fossem as mudanças, eu nunca poderia crer em sua existência fora dos limites daqueles muros altos, que obrigavam seus hóspedes a criarem uma série de artifícios para manter a lucidez.
Foi durante um desses longos passeios, acompanhado de minha solidão, que reencontrei o Adamastor sentado em um dos bancos de concreto do pátio, dando tapas nas costas, tentando espantar as moscas. Sentei-me ao seu lado com cuidado, vagarosamente para não chamar-lhe a atenção. Ele permaneceu impassível, vez ou outra dando sacudidelas nos ombros, como se sofresse de calafrios. Eu estava impaciente para perguntar a ele sobre nossos companheiros, mas ainda me restava um pouco de orgulho e estava esperando ele tomar a iniciativa. Permanecemos longo tempo sentados lado a lado, como dois humanos verdadeiros na plenitude de um sonho, e quando ele veio a mim, sorrindo, como se o nosso passado nunca houvesse existido, resolvi que não queria mais notícias do entreposto. O concreto frio havia alterado a minha personalidade. Minha misantropia voltou com força total e pude ver ao longe uma nuvem de muriçocas se aproximando. Provavelmente era o hálito infestado de fumo de corda do Adamastor que havia atraído novamente aquelas pragas.
Voltei ao meu quarto, fiz as minhas malas enquanto plantava bananeiras e corri ao escritório central. O homem de terno branco usou um carimbo numerador para autenticar a minha requisição, com a qual fiz um tsuru de dobraduras e prendi com um alfinete em minha lapela. Enviei a minha bagagem de navio com certa antecipação e fui me despedir dos poucos amigos que havia me restado, concentrados no jogo de truco lá no galpão. Golias me abraçou choroso e pediu que eu ficasse. Rubens me entregou uma lista com os resultados da jogatina em minha ausência. Alguns dos novatos vieram me dar os parabéns e perguntaram quantos anos ainda me restava. Falei a eles que os prognósticos não eram dos melhores, mas havia um novo tratamento à minha espera do outro lado dos muros do entreposto. Os outros fizeram fila para me abraçar. Comecei a cobrar alguns centavos de cada um deles, como forma de retribuição pelo afago. Anotei tudo em um livro caixa, que guardei junto com as malas que partiram antecipadamente, antes mesmo das minhas lamúrias, das minhas decisões e do meu arrependimento.
Cara, preciso ler de novo e amanhã o farei. Mas já posso adiantar que há frases que reli e reli, não pra entender melhor (apesar de não haver mal nenhum nisso), mas porque estavam MUITO bem construídas. Nesse momento, well, posso destacar o 1º § da 2ª parte.
Dessa vez o comentário será feito durante a leitura. Você vai entender:
1. Adoro quando a história já começa com o bonde andando. A gente não está vendo uma preparação de terreno linear, mas um flashback.
2. Massa a estranheza da doença do narrador-personagem.
3. Reitero a minha apreciação da segunda parte.
4. O final, num ritmo mais devagar, meio melancólico, também ficou bom.
Tenho que admitir que, pra mim, não foi um texto muito fácil. Mas gostei, sem dúvida gostei.
Abraço!
Acabei de vir no blog, me perguntando o quanto já teria perdido…
Queremos contos novos! [Everybody]
@Arthur: volto já!