O retorno dos pés

pés

Ele olhou para os pés descalços, ainda havia uma pequena chance. Poderia escalar a pilha de caixas de alho e depois de um breve mortal, iniciar a retomada da cidadela, a cidadela adormecida ao pé do morro dos homens de pescoços torcidos, como no sonho. Homens com cabeça de meio peixe. Depois de um pouco de leitura sobre a geopolítica ele dominaria todos os caminhos, cada nuance, para poder chegar até seu destino. Lembraria com calma de construir seus personagens tanto planos como também esféricos, mas que não morressem subitamente como os criados pelo senhor Foster. Poderia realmente deixar sua marca para que as gerações seguintes o venerassem como são venerados os grandes conquistadores? Ele ficou lá sentado por vinte anos, olhando para a cidadela, tentando decidir seu destino, depois se levantou e resolveu dormir, para retomar a tarefa no dia seguinte, quando teria mais umas duas décadas ao seu dispor. Um de seus pés se movimentava com fúria, o outro insistia em permanecer ali grudado ao solo, como se tivesse criado raízes invisíveis, brotadas por baixo da sola deste seu pé teimoso. Dedilhava com facilidade e pensava nos amigos próximos, como se sua realidade não fosse mais expansível do que esses meros níveis. Precisava ser mais compreensível com a humanidade, precisava ouvir pessoas novas, com novas idéias e começar a selecionar seu novo círculo de relacionamentos, como em uma grande bola de neve, sem ter as mãos presas. Mas os homens de pescoço torcido estariam vigiando a noite inteira, como caranguejos de patas lisas, com seu exoesqueleto rosado, suas cabeças de lagarto gordo. E ele estava fora de controle, havia bebido muito aiuasca misturada com hipnóticos farmacológicos. Sentou-se, o pé ainda imóvel, crente de que a terra o englobaria mais uma vez. Poderia ser como Paul Rabbit, tinha esta certeza, não fossem as vespas assassinas insistirem em chamá-lo, em coro, durante toda a madrugada. Aquele livrinho de física quântica, com desenhos bonitinhos, dado a ele pelo amigo barrigudo, seria um bom início para a nova revolução cultural, nada nos moldes da época de Mao, por Júpiter! Ele precisava de um bom banho de ácido, longe dos tubérculos que agora se enrolavam em sua perna. Entraria em seu guarda roupas, pegaria seu novo traje de lodo e iria ler um pouco do mestre Moore, com aquela barba enorme, mas conhecedor de alucinógenos inimagináveis, e também do tantrismo. Mestre Moore, que tanto o ensinou nos últimos dias e que tanto ainda o ensinará. Seu pé já dava sinais de afrouxamento, bastava falar um pouco sobre as realidades, mesmo que pastosas como manteiga, como dedilhadores eunucos ou pedaladores de bicicletas na chuva. Estas construções, esta vontade de fugir de si mesmo, de abandonar o próprio corpo e olhá-lo de fora ou mesmo de virá-lo do avesso, como em um experimento, ou de cortar todos os seus laços com o mundo exterior, seria o mais inumano que ele poderia fazer consigo mesmo, vigiando os homens com cabeça de peixe lá embaixo, sem vontade de escalar o amontoado de caixas de alho. A culpa era daquela criatura atrás de uma mesa, sentado com suas orelhas salientes, em um quarto escuro e pensando em abandonar a si mesmo. Plano, demasiadamente plano. Como poderia torná-lo real, de carne e osso?

Mas não é para a ficção bater à porta de madrugada, com frio e toda ensopada, pedindo abrigo e comida, soluçando coisas sem sentido. Matéria-prima dela mesma, se reconstruindo a cada segundo, congelada em um tempo-espaço completamente particular. O material de que somos construídos não passa de algumas dezenas de substâncias essenciais a nossa existência. Organicamente falando somos apenas uma coleção dessas substâncias. Mas não entendo o suficiente de química e biologia para poder explicar aos caros senhores, que agora me rodeiam nesta sala escura, para explicar aos senhores que não tenho as respostas que procuram, e não adianta entreolharem-se e cochicharem entre si, praguejarem sobre minha escolha estilística ou meu corte de cabelo. Como podem ver, o pé continua enraizado, entranhado neste solo movediço que os senhores chamam de arena, mesmo que ainda não tenham soltado o leão para me devorar. Os senhores me conhecem bem? Poderiam dar um testemunho de meu trabalho, de meus esforços para combater o exército de homens com cabeças de peixes, vestido nesta pele de homem com pés descalços?

Em meu escritório, com paletó e gravata, sentado à mesa de trabalho, relembro a reação daqueles imundos enquanto entrevisto seriamente este nobre rapaz que está à minha frente e insiste que eu leia seu currículo, que deposito com cuidado na lata de lixo, com toda a calma do mundo para que ele veja a mensagem nos meus olhos: para entrar na empresa ele precisará passar por alguns testes, alguns que criei para dificultar um pouco a vida de jovens novatos como ele. Digo a ele que hoje já dormi demais, já enfrentei dragões demais e agora busco apenas um pouco de sossego. Não deixo que ele perceba que meu pé está preso embaixo da mesa, como se estivesse colado no carpet. Apenas este pequeno detalhe para que eu não me esqueça de minha condição, de minha missão. O rapaz titubeia nas respostas e cai ferido aos meus pés. Tento a manobra de ressuscitamento cardio-pulmonar por alguns minutos, mas não tenho sucesso. Pego o desfibrilador e aplico milhares de volts em sua cabeça, mas também não consigo resultado. Subo a plataforma até os céus, onde os raios da tempestade poderão trazer novamente a vida à carne antes inerte. A turba continua tentando derrubar as portas de meu castelo e então eu fujo para baixo da terra, onde estarei à beira do Poço de Lazarus rodeado pelos morlocks, minha única saída, caso eu conseguisse mover meu pé direito, que de repente se solta e me faz sapatear como louco e juntos nós damos a volta ao mundo, dançando e cativando todos por onde passamos. Décadas e mais décadas de apresentações de sucesso, sempre bebendo e fumando além da conta, até que todos os meus órgãos internos não aceitam mais aquele tratamento imundo e me jogam para a rua, para o esgoto que é meu lugar, que desemboca no oceano quentinho. Flutuamos juntos por mais algumas décadas, sempre olhando para o sol e as estrelas, que correm tão rápido no céu, e nem ao menos torram ou congelam minha carcaça. Pego todas as correntes marítimas possíveis e depois de tantos milênios, nem sei mais como me comportar corretamente em uma ocasião social. Se eu escalar a pilha de caixas, não poderei ver com clareza a chaminé da minha casinha de campo. Não poderei cozinhar ou me banhar em paz.

Na praia, fui acordado pelas lambidas na cara de um cão com dois rabos. Quando um dos rabos abanava o cão estava feliz, quando nenhum dos rabos abanava o cão tinha fome, mas quando os dois rabos abanavam, uma catástrofe ocorria. Era meu cão e apenas eu sabia de sua capacidade, não é verdade Rex? Lembra de quando comeu meus dois amigos, depois que se mataram mutuamente naquela noite da autópsia? Rex abana os dois rabos em resposta e eu sinto uma pontada em meu coração, chega minha hora. Deito em seu colo e peço desculpas por tê-lo abandonado durante todos estes anos. Você me perdoa Rex? Poderia me contar uma estória para que eu possa dormir em paz?

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