Almoço de domingo

Fugi quando minha mãe chamava todos os familiares para o almoço de domingo, que geralmente contém batatas em forma de maionese e desenhos animados na sala de estar. Corri antes mesmo que o caminhão com a mobília da nova vizinha manca abrisse as duas grandes portas da retaguarda e fizesse esvoaçar a conhecida poeira da mudança em dias de domingo nublado. Quando cheguei na banca da esquina o jornaleiro adivinhou que eu procurava me refugiar do frango assado e abriu o alçapão camuflado pela pilha de encalhe com os jornais de sábado, quando todos se recusaram a aceitar a manchete da capa sobre a queda da muralha da china por um grupo de cidadãos que se dispuseram a pular todos ao mesmo tempo com o pretexto de tirar a terra do seu eixo, mesmo que por alguns míseros instantes. Ainda tive tempo de encher o cantil com calda de picolé derretido antes que o jornaleiro me desse uma rasteira e eu caísse rolando em um grande poço de no mínimo (senão igual) a uma boa dezena de centenas de metros à direita do açougue, que sofria com o derretimento de quartos de boi do campo recém carimbados e vermelhos devido ao sangue drenado e transformado em morcela antes mesmo do frigorífico ter ficado sem energia elétrica. As pessoas se amontoavam para comprar velas no mercadinho da esquina quando entrei correndo e berrando “incêndio” a plenos pulmões apenas para não precisar enfrentar a fila do caixa e poder pegar meia dúzia de balas de banana e um pacote prateado de batatas fritas trangênicas sabor churrasco. Liguei para casa e falei com a camisa esticada em cima do fone, insistindo que o “prisioneiro” passava bem e seria entregue em poucos minutos, com uma amnésia crônica e por isso nunca poderia nos identificar, nós que estudávamos a raça humana por tanto tempo e tínhamos a capacidade de encher os estômagos desses “símios” com alimentação suficiente para agüentar até a janta, desde que ela não fosse composta de maionese gelada do meio dia. Do outro lado da linha o ser genitor parecia pensar cuidadosamente no caso: ouvia-se apenas uma respiração e (quase inaudível, em background) a contagem de números em ordem progressiva. Depois de uma rápida negociação passei os dígitos da minha conta em alguma ilha caribenha e lembrei que dentro de pouco tempo o alçapão mágico do jornaleiro se fecharia, merecendo minha atenção especial. Fui ao posto de gasolina e pedi cinco sacos de emergência, dizendo que meu rico pai diplomata pagaria em dobro se algum dos saudáveis rapazes que ali trabalhavam pudessem me acompanhar até o automóvel que estava lá embaixo atravancando o trânsito, pronto para ser multado por um guarda de quepe marrom e calças curtas atochadas em sua pequena bunda. Enquanto eu e o escolhido corríamos para o local do crime, cada um levando um saco e meio de combustível, ganhei sua confiança através da confissão das mais íntimas e infantis fantasias sexuais, e então proclamei que me pai preferia gasolina azul de antigos biplanos já em extinção devido à suja concorrência com os concordes de bicos retráteis. Choramos abraçados enquanto derramávamos quase a totalidade do líquido volátil sobre um conjunto de formigueiros feitos com palhas de milho bem à beira de uma estrada que fica a duas quadras da janela do sótão da minha casa. Puxei o capuz preto para que ninguém me reconhecesse, senão teria que solicitar a ajuda do frentista que admirava com seus olhos sorrateiros de homem santo enquanto o fogo torrava os milhares de corpos já negros das criaturas coletivas e descerebradas que talvez nem mesmo tivessem o bom hábito de sentar aos domingos em uma sala de jantar com os filhos para comer maionese com frango frito e ver desenhos animados. Depois de convencer o frentista de que o melhor remédio seria nos separarmos antes que os vietcongues sentissem o cheiro das formigas torradas, corri para a padaria disposto a comprar um pacote de finos pães sírios para agradar minha pobre mãe, que há esta hora já deveria estar ligando para o esquadrão antibomba ou outro aparelho do tipo, a fim de entrar em contato com os seqüestradores extraterrenos. Enquanto olhava para os números que não paravam de transmutar verdemente em meu relógio de pulso eu corria para a banca em busca do portal sagrado que me entregaria são e salvo para meus genitores. Durante o trajeto senti aquela incomoda sensação quando meu tênis fabricado pela infantil mão-de-obra barata de algum país oriental devorou completamente minha meia com a bandeira daquele país que explora o primeiro com suas propagandas de gente impossivelmente feliz, bonita e saudável correndo em dias maravilhosos. O ingênuo devaneio geopolítico não me impediu de rasgar a bandeira com nojo vomitesco e lançá-la na primeira grade de bueiro ainda em funcionamento àquela hora da tarde. Olhei então para as rugas da minha cara refletidas em uma poça d’água e me surpreendi com a velocidade com que aquele dia havia passado. Podia ver o zinco da banca refletindo o pouco sol amarelo do entardecer por trás da cadeia de montanhas forradas de mata atlântica reflorestada. Um tele-transporte seria arriscado naquela hora, por isso optei por dois pacotes de figurinhas de jogadores de futebol e o jornal de domingo, que pingava um pouco de calda de frutas dos picolés empilhados no freezer gorgolejante. Regateei com o jornaleiro e ele prometeu de joelhos que sua velha mãe precisava fazer uma dezena de cirurgias e por isso o melhor seria um tiro de carabina que estava tão cara que mesmo penhorando toda sua mobília seria impossível conseguir a quantia antes da jogatina do próximo final de semana. Levantei a mão em silêncio, desgostoso com suas lamúrias e ele me deu um caramelo em troca de minha compreensão. Quando cheguei em casa todos me esperavam no hall de entrada com suas caras estupefatas. Joguei com carinho o pacote de pães sírios no colo da minha mãe e durante um mortal por cima da mesa de centro (já estávamos todos na sala de estar), arremessei o jornal no colo de meu pai. Meu avô paterno foi o único que sorriu, mesmo sem tirar o cachimbo manchuriano da boca enrugada. Propus uma reunião em volta de uma fogueira no centro da cozinha, que era forrada de pisos não inflamáveis feitos de cerâmica refratária assada em fornos a temperaturas já tão escaldantes. Dessa vez não conquistei nem mesmo a simpatia de meu avô, podia ver isso em seu retratado rosto empoeirado. Sentei na cama e olhei os meus familiares em cima da penteadeira de madeira descascada, todos me acusando com seus estáticos olhares de reprovação. Tentei ainda argumentar em meu favor, mas obtive apenas o silêncio do grupo enfileirado como pedras de dominó.

(publicado no 5º Conto e Poesia do Sinergia, 2005. p.11)

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